Do ponto de vista de gestão de crises corporativas, este último ano foi marcante tanto no mundo quanto no Brasil.
Fiquei impressionado com as reportagens onde o BTG diz ao mercado que está “business as usual” meros dois dias depois de seu controlador ser preso. Parece uma posição um pouco incoerente, para não dizer contraditória. Me fez refletir.
Lá fora, a questão da corrupção empresarial se tornou uma demanda estratégica para empresas e o compliance anticorrupção mudou de marcha – saltou do nível de gerência para o de diretoria. Esta evolução, que já estava acontecendo há alguns anos, foi coroada com o escândalo de Volkswagen. Não há mais dúvida: gestão de crises é agora reconhecida como componente básico de qualquer sistema de compliance corporativa e o executivo responsável pela área de compliance agora faz parte do chamado “C-Suite” – onde estão os mais altos dirigentes da organização, no centro de poder, encarregados de tomar as decisões mais importantes. O nome vem de “C” por “Chief – como CEO, para Chief Executive Officer, COO (Chief Operating Officer) e assim por diante, agora chegando a CCO – Chief Compliance Officer”.
No Brasil, o último ano foi marcado pelas prisões inéditas de chiefs de grandes empreiteiras, por acusações e contra-acusações de corrupção e extorsão, e pelas delações premiadas. Em linguagem de gestão de crises, são empresas enfrentando anormalidades por conta de escândalos de corrupção. Pela primeira vez, as autoridades da Justiça estão conseguindo manter longe as pizzarias. Mesmo assim, até o primeiro semestre deste ano parecia que, apesar de todas as prisões, sobrava um grupo pequeno de verdadeiros “intocáveis”.
Eu mesmo pensei que o escândalo pudesse ser contido – e nunca estive sozinho nessa sensação. Me lembro de uma reunião com um dos mais respeitados private bankers do Brasil em abril deste ano. Num certo momento ele começou a falar da Operação Lava Jato. Não obstante as prisões, ponderou, dois grupos tinham status de intocáveis – Odebrecht e BTG. Ele tinha certeza: as presas das autoridades nunca chegariam a morder ali. Pois é, mas chegaram.
Com os dados certos nas mãos, será que essa percepção que era minha e também de meu colega banqueiro não seria outra? Com certeza, sim. Vamos esclarecer. A atividade “gestão de crises” engloba duas frentes distintas. A mais conhecida é a de crisis communication. Normalmente cai para um profissional de marketing, propaganda ou comunicação assessorar a empresa sobre que mensagem deve ser transmitida aos stakeholders numa situação de crise. Seria talvez a pessoa que aconselhou a alta gestão do BTG a mandar a mensagem de “business as usual” para o mercado. Não domino e não me meto nesta área. Não tenho os skills para avaliar qualquer assessoria de comunicação de crises. Posso só observar, como me considero, após quase 30 anos no Brasil, um observador da cultura brasileira.
Mas o outro aspecto da gestão de crises – e esta é minha área de expertise – envolve a parte mais “visceral” da empresa, o dia a dia da organização. Os processos, controles, sistemas, mercados e, mais importante, as pessoas – desde a recepcionista até o presidente. Enquanto o profissional de comunicação entra em ação após o escândalo estourar, meu trabalho começa bem antes – no momento que um dos chiefs tem a visão, a consciência, de que existe uma situação que pode se tornar crise. Em temos animalísticos, se o Wolfe fizer seu trabalho bem feito a situação nunca vai dar zebra. Eis a essência da arte da gestão de “situações especiais”. É preciso identificar e reconhecer a existência de uma situação com potencial de se tornar crise. Uma vez reconhecida, o trabalho envolve investigação dos fatos e avaliação das vulnerabilidades e potenciais implicações para tomar medidas para resolver a situação e colocar a empresa de volta no modo “business as usual”. A arte é fazer que os stakeholders nem notem que houve um momento onde não se viveu no “business as usual”.
Talvez por esta razão sou conhecido como investigador de crimes financeiros e não como gestor de “situações especiais”. As “crises” nas quais sou contratado para trabalhar não chegam a se tornar escândalos públicos. São resolvidas antes. No instante em que a situação retorna ao status de “negócios habituais”, meu cliente não precisa mais de mim. Então volto para as sombras. Ninguém fica sabendo de nada.
Nessa perspectiva, coloco três perguntas acadêmicas em relação a estes (e a outros que vêm surgindo) ex-intocáveis.
1) Houve um momento em que um assessor ou membro da alta direção do grupo poderia ter percebido que existia uma situação com potencial de sair de controle?
2) O que poderia ter sido feito naquele momento para reverter, controlar, conter ou, pelo menos, começar a gerenciar a situação?
3) Mais complicado, a empresa brasileira existe e atua num ambiente econômico e político caraterizado por relacionamentos e incentivos que ficam no limite do escuso e do perverso. Assim que um escândalo estoura em um meio destes, acontece (e aconteceu) uma mobilização de relacionamentos comerciais e políticos, de ações e reações, de medidas e contramedidas motivada por uma mistura de ganância, medo, comprometimento e poder. Nesta realidade, a alta direção não pode adotar postura de avestruz. Tem de andar na corda bamba de cobrança e pressão. Assim, quais as ações que poderiam ter sido feitas, mas não foram, para evitar a situação atual? E quais as ações que não deveriam ter sido feitas?
Vou terminar com uma quarta pergunta, desta vez não acadêmica, mas uma pergunta de fato. Estes ex-intocáveis tinham alguém na alta direção, ou assessorando a alta direção, cuja responsabilidade era levantar questões como estas? Pensando bem, talvez a resposta esteja na própria pergunta. De duas, uma: ou não havia ninguém com esta responsabilidade ou havia mas seus conselhos não foram seguidos.
*Advogado pós-graduado em Direito Econômico pela Yale Law School, Mestre em Direito Internacional por Cambridge, Barry Wolfe é diretor da Wolfe Associates (www.wolfe.com.br), consultoria em compliance preventiva, avaliação de riscos e investigação de fraudes corporativas.
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