Porque o Brasil precisa de uma Lei Whistleblower

Como observador da cultura brasileira, acho sintomático que por aqui exista uma expressão de magnitude vulcânica como correspondente à leve palavra usada mundo afora para quem denuncia corrupção ou conduta imprópria.

Lá fora, a palavra é whistleblower – apitador. Até se tornou termo técnico-legal. Porém, quando alguém denuncia corrupção no Brasil se diz que a pessoa botou a boca no trombone. O apito tem som alto e raso. Já o trombone é grave, profundo e toma o ambiente com sua ressonância.

Será que esta metáfora nos diz algo sobre a natureza dos esquemas de corrupção no país? Apitar sugere assunto pequeno ou ao menos isolado da normalidade. Soprar trombone é mais retumbante. Poderia sugerir que a corrupção no Brasil permeia mais a cultura do país? Teria assim a denúncia efeito mais ressonante?

Esse é um tema que vai além da linguística e que merece atenção de quem se preocupa com os rumos do país. Mas, antes, quero corrigir uma confusão comum no Brasil. Whistleblowing – e o adoto como termo técnico – é diferente de delação premiada. A hoje famosa delação acontece num processo criminal onde o réu recebe um “prêmio” na forma de imunidade ou sentença menor em troca de se tornar testemunha de acusação contra seus cúmplices. Nesta situação, o delator não é nenhum inocente. Podemos dizer que ele é duplamente “culpado”. Na esfera legal, sua culpa no grupo criminoso é assumida. Na esfera moral, ele trai e dedura colegas infratores para salvar a própria pele.

Lei Whistleblower

A situação do whistleblower – pessoa que denuncia conduta imprópria numa empresa ou órgão publico – não poderia ser mais diversa, tanto na área legal quanto na moral. Em princípio, o whistleblower é inocente. É alguém que vê algo errado e resolve falar. Pode ser um funcionário ou alguém de fora – um fornecedor ou cliente.

O canal de denúncia do whistleblower é o mais eficaz para revelar condutas indevidas. A própria Lei Anticorrupção enfatiza a importância de se ter mecanismos e processos internos de incentivo à manifestação de irregularidades. Acontece que não adianta uma empresa ter esses canais se ninguém se sente à vontade para denunciar – por temer os efeitos.

Na Inglaterra, além de canais de denúncia há proteção da lei contra represálias. Uma pessoa não pode ser demitida, por exemplo, por apontar condutas impróprias. Nos EUA a lei vai um passo além. Quem denuncia ao SEC pode ser recompensado: se a revelação resulta na imposição de penalidades, o denunciante pode receber prêmio de até 30% do valor da multa.

Isso ocorre porque há uma percepção – baseada na realidade – de que denunciar por um lado provavelmente não levará à investigação e punição de culpados e, por outro, que com certeza resultará em represálias contra o denunciante. Ele vai perder o emprego, será apontado como dedo duro e terá seu nome queimado no mercado, dificultando um novo emprego.

Por que há essa diferença gritante no tratamento ao denunciante no Brasil e em outros países? Penso que esse fenômeno é resultado do conjunto de três fatores culturais brasileiros:

1.Manda quem pode, obedece quem tem juízo. Este “princípio” ainda está presente em muitas instituições financeiras, empresas e órgãos públicos. Em alguns locais isso é dito expressamente a recém-contratados, e dito com orgulho.

2.A “lei de Gerson”. Cada um tem de aproveitar as situações que se lhe apresentam e, sempre que der, levar vantagem – mesmo prejudicando alguém. Quem dá chance é trouxa.

3.O corolário da lei de Gerson. Quem merece admiração é o espertalhão que tira proveito do que não se protege. O honesto, que recusa mordomia, não faz jus a respeito.

Como estes fatores se combinam na prática? Imagine um jovem – recém-formado, idealista, bem intencionado e inteligente – em seu primeiro emprego numa organização onde ele acredita, em inocente ingenuidade, que o princípio da meritocracia se aplique.

Logo ele vê que a pessoa desonesta e astuta é promovida – a lei de Gerson se mostra em vigor. Pior, o jovem nota que aquele outro cara, incorruptível, não vai para frente, é criticado, perde o posto – e apreende que honestos são otários e malandros, admiráveis. O que ele faz? Põe um cabresto na cara e toca seu serviço vendo mas “sem enxergar” o que ocorre. E, claro, não diz nada a ninguém, porque então já entendeu que obedece quem tem juízo. Suas opções ficam entre aceitar a estagnação profissional ou pensar que se “todos” levam vantagem, essa é a regra e, assim, também deve fazê-lo.

Será que um programa de compliance importado dos EUA – com códigos de ética, canais de denúncia e treinamento – vai mudar esta situação? Nunca. Os funcionários vão assinar os códigos, assistir treinamentos, falar sim, sim, sim, e depois voltar ao trabalho de cabresto sabendo que quem tem juízo fica quieto.

O problema é mais agudo para o alto executivo. Por exemplo o diretor que vê outros diretores – ou o próprio CEO – fazendo coisas erradas, roubando, dando propina e a recebendo. Ele enfrenta um dilema: se denuncia, perde o cargo. Se silencia e depois o crime é descoberto, será culpado pelo silêncio.

Enquanto a lei brasileira não der proteção a denunciantes e incentivos reais para denúncias, o whistleblower só funcionará em empresas onde há verdadeiro compromisso dos donos e gestores com a ética – onde exista fluxo de informação, respeito e cooperação, com os funcionários vestindo a camisa corporativa.

Embora exista a percepção de que a maior parte das empresas é formada por pessoas honestas e gestores éticos, nem todas são assim. Além disso, a própria concorrência às vezes leva companhias a situações limite nas quais ou a ética é relativizada ou negócios são perdidos. A lei existe para tornar desinteressantes essas tentações. Ter no Brasil uma legislação de proteção real, concreta e ampla a denunciantes no formato whistleblower é, hoje, matéria que deveria estar nos pensamentos e notebooks dos legisladores. É a hora certa para dar um grande passo e firmar, de uma vez por todas, que a corrupção não fará mais parte da cultura brasileira.

*Advogado pós-graduado em Direito Econômico pela Yale Law School, Mestre em Direito Internacional por Cambridge, Barry Wolfe é diretor da Wolfe Associates (www.wolfe.com.br), consultoria em compliance preventiva, avaliação de riscos e investigação de fraudes corporativas.