Ao apresentar a mais recente denúncia contra o ex-presidente Lula, procuradores do Ministério Público Federal o acusaram de ser comandante de uma “organização criminosa”.
O uso dessa expressão forte, que continua gerando ruídos no Fla-Flu em que o cenário político brasileiro se tornou, merece exame mais atento. Para ser bem claro, a verdade é que os esquemas de propina investigados pela Lava Jato podem ser um bocado de coisas – mas chamá-los de “organização” não parece correto. Há um sutil erro no uso deste termo que vale a pena analisar.
Os criminologistas italianos Della Porta e Vannucci demonstram que, para um esquema de corrupção funcionar, quando envolve muitas partes e grandes quantias de dinheiro, a corrupção tem de ser sistêmica. Corrupção sistêmica tem duas características principais. Primeiro, tem que haver regras de jogo claras respeitadas por todos os envolvidos. Regras, por exemplo, estabelecendo que uma vez combinado o valor da propina, o “prestador do serviço” entrega exatamente o prometido pelo preço combinado. Outra regra fundamental é a obrigação de sigilo, de nunca falar da transação e jamais dedurar os envolvidos. Esta segunda característica mostra a existência de um sistema de “governança” para garantir a adimplência das regras.
Em termos de dinâmicas organizacionais, são nada mais e nada menos que os dois pilares do crime organizado propriamente dito. A obrigação de sigilo é o vínculo de coesão dos envolvidos, de comprometimento mútuo – chamado no Brasil de “rabo preso”. Para entrar no grupo, um novo integrante tem que deixar seu traseiro ser preso aos dos demais confrades.
Na Máfia Siciliana, o arquétipo de crime organizado, este processo tem um nome, Omertá. O novato, para ser aceito como membro pleno da família, deve cometer um assassinato. Assim, ele fica comprometido. Não só ele: cada participante está da mesma maneira compromissado com os outros. Cada indivíduo possui informações que podem incriminar os demais. Se todos ficam quietos, todos estão protegidos. Se um abre a boca, todos se tornam vulneráveis – e a casa pode cair.
O outro pilar é a contrapartida do primeiro. Toda organização criminosa tem um mecanismo para manter os envolvidos na linha, o que na prática envolve a habilidade de ameaçar e intimidar o potencial violador das regras, aplicando violência física se e quando necessário.
No Brasil, esta parte é conhecida como “queima de arquivo”. Porém, aqui, este conceito é mais restrito e tem origem na ditadura, quando se referia à eliminação de provas. Numa organização criminosa, a destruição de evidências comprometedoras é apenas um aspecto, e nem o mais básico, de seu modus operandi. Nela, mais importante é garantir o cumprimento das obrigações, das quais a mais fundamental é a de calar a boca. Isso implica em enviar uma mensagem clara a potenciais dissidentes, alertando o que vai acontecer com eles se transgredirem.
Olhando sob o prisma destes conceitos, o esquema de corrupção investigado pela Lava Jato representa o ápice do crime desorganizado. Para começar, não havia regras claras – e as regras que existiam nem sempre eram cumpridas. Quem pagava propina não tinha certeza de que o acordo seria honrado. Os ditos “lobistas” e outros intermediários ofereciam resolver situações, aceitavam de bom grado o dinheiro – e nem sempre entregavam o serviço. Ou pediam mais dinheiro, e às vezes ainda assim não davam o prometido. Pior, alguns exigiam pagamento de propina na cara dura, sem nenhuma oferta em troca e sob ameaça de prejudicar o pagador. Ou seja, extorsão pura. Isso acontecia porque não havia alguém para subscrever as transações – isto é, para garantir o cumprimento das regras.
O que se percebe agora, com um tanto de perspectiva, é que os esquemas esclarecidos pela Lava Jato eram uma mistura de gula, de Lei do Gerson e da mais imaculada sensação de impunidade. Quem pagava propina aceitava seu papel de vítima e otário.
Quando a Lava Jato começou, usando prisão preventiva para forçar delação premiada, com base no modelo italiano da Operação Mãos Limpas, a atividade de dedurar virou bola de neve, superando todas as expectativas dos promotores.
Foi nada mais que o velho jogo do dilema do prisioneiro. Nele, dois presos são colocados em celas separadas. Se os dois ficam quietos, ambos se salvam. O objetivo dos captores é convencer pelo menos um deles de que seu colega abriu a boca. Se ele acredita nisso tem de falar também para se salvar ou, pelo menos, para mitigar sua situação.
Para usar uma dessas metáforas de filme de máfia, no caso da Lava Jato a delação corre solta porque não há uma equipe de gangsters durões para passar uma mensagem simples – “cale a boca ou você – ou sua família – serão mortos”. Claro, isso é só metafórico – mas, como se viu, a existência de algum tipo de controle por meio de ameaça é condição sine qua non para configurar uma organização criminosa
Chamar de “crime organizado” aos esquemas de falcatruas que envolveram Petrobras, políticos, empreiteiras, agências de publicidade e outros vários atores, portanto, chega a ser quase ofensivo a “instituições” como a máfia, esta sim “organizada”. Talvez o modelo criminoso mais próximo do que ocorreu no Brasil seja o das gangues, nas quais o vale tudo impera. Ou, caso se queira ficar em terminologia próxima à elegida pelos procuradores do MPF, bem cabe a expressão “desorganização criminosa”.
Seja qual for a escolha das palavras, isso demonstra que a situação é ainda mais assustadora do que aquela que seria traduzida por uma “organização”. Nesta, ao menos, há regras, isto é, algum tipo de limite. No vale tudo, não.
*Advogado pós-graduado em Direito Econômico pela Yale Law School, Mestre em Direito Internacional por Cambridge, Barry Wolfe é diretor da Wolfe Associates (www.wolfe.com.br), consultoria em compliance preventiva, avaliação de riscos e investigação de fraudes corporativas.
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