Há uma transformação tremenda ocorrendo nos meios corporativos da Europa e dos EUA que, por motivos que fogem a minha compreensão, está longe do radar da grande maioria dos altos executivos brasileiros.
Ela responde pelo nome talvez óbvio de ‘Compliance 2.0’. Embora a denominação leve a entendê-la como modinha – incluir números normalmente indica mero remake pop de sucesso da temporada passada –, isso é exato o quê a nova edição revista e ampliada da metodologia de compliance não é.
Na verdade, muda tudo. Se até aqui o conceito seguido pelas companhias era o da conformidade com conceitos rígidos de conduta, a percepção passa a ser a da flexibilidade e do entendimento de que nem tudo pode ser controlado. Não é que as noções básicas de compromisso com a verdade, ética e autoproteção da organização tenham mudado. Elas permanecem. A alteração se deu em notar como esses compromissos afetam a realidade e são por ela afetados. Flexibilidade então é ver que nem sempre vermelho é vermelho: há gradações. Para sair da teoria e ir para a prática em um exemplo extremo, é claro que pagar propina não é lícito. Mas se uma companhia e seus funcionários estão sob ameaça de um grupo terrorista ou criminoso, seria ilícito pagar a um dos bandidos para que traia a quadrilha e dê dados para desbaratá-la?
Essa pergunta é quase uma metáfora, mas creio que ela ajude a dar insights ao executivo sobre o porquê da importância de pensar mais alto e mais arejado sobre esse tema. O Brasil vive um momento paradoxal de grande pressão por ética nas relações políticas, corporativas e pessoais confrontada por um crescimento ímpar nos escândalos públicos e no deboche de alguns de seus atores em relação ao que ocorre. É inocente supor que o tipo de situação que levou à Lava-Jato não continue a existir nesse exato momento. Esse é um dos terrenos em que há riscos nítidos para as empresas, mas não é difícil pensar em outros tantos em que as temeridades estão embaçadas mas, como sempre, prontas a explodir. E os resultados, bem, os resultados estão aí escancarados em exemplos cheios de lições – como os recentes casos da Volkswagen, do Pactual e da Samarco o provam.
A questão portanto não é se vale a pena para uma empresa – de qualquer porte – ter uma política de compliance. Isso já está posto. A questão é se essa política vai ser verdadeira ou, esse é o pior dos mundos, se será apenas ação de marketing. Eu penso, e aí finalmente entro no ponto deste artigo, que a ideia-força do compliance 2.0 está em colocar esta pergunta no centro do palco, oferecendo para as companhias que não gostam de ver seu valor de mercado queimado uma possibilidade maravilhosa de repensar suas políticas de gestão de risco.
Vamos ver por que isso é verdade confrontando seis pontos chave que distinguem o velho compliance 1.0 do novíssimo modelo 2.0. O primeiro deles tem a ver com a relevância que as políticas de conformidade ganharam. Trata-se do local habitado pela área de compliance no organograma da empresa. Na versão 1.0, o comum é encontrar o profissional alojado abaixo do diretor Jurídico ou similar. Na 2.0, ele ganha status de diretoria. Uma das implicações dessa mudança é o segundo ponto chave: se antes o executivo da área não tinha poder, ou tinha poder emprestado, atualmente ele tem autonomia. Outra alteração é que até aqui o departamento se resumia a um cara ou talvez uns pares deles, enquanto hoje se trata de uma equipe de fato. O quarto ponto é também derivado do novo status: antes o cargo era vulnerável, mas agora ele tem recursos próprios.
Note que essas mudanças não são em absoluto maquiagem. Elas demonstram uma transformação poderosa em curso no formato “existencial” de uma companhia. Mas há dois outros pontos fundamentais de inflexão, e ambos já denotam o resultado dessa conquista de poder. O quinto da lista é que se o chefe de compliance costumava ser percebido como o “chato do Mr. No!”, e qualquer executivo do setor sabe como é isso, no modelo 2.0 o diretor de conformidade é objeto de cooperação e de colaboração. Isso não surge apenas do poder que ele recebe, mas da percepção dos colegas quanto a seu valor como alguém que evita encrencas – aliás, evita o tipo de encrenca que pode tornar um inferno a vida da empresa e de cada um dentro dela. A última das novidades chave é, talvez, um corolário das anteriores: enquanto na edição 1 por vezes o profissional da área era oferecido sobre um altar como bode expiatório quando as coisas davam errado (ou ainda justamente quando iam pelo caminho certo), na versão 2 sua posição é a de um centro de eficácia e excelência, até por isso blindada contra a imolação corporativa.
Não é à toa que, nas companhias avant la lettre, uma nova sigla venha surgindo em compasso com a ascensão do compliance 2.0. Nelas, o acrônimo CCO, de Chief Compliance Officer, ganhou uma letra e um bocado de responsabilidade a mais ao se tornar CECO, ou Chief Ethics & Compliance Officer. Não é pouco, não. Com tudo isso, mais minha incompreensão do início deste artigo me parece pertinente: afinal, por que a edição 2.0 do compliance ainda não é tema dominante nas organizações brasileiras?
*Advogado pós-graduado em Direito Econômico pela Yale Law School, Mestre em Direito Internacional por Cambridge, Barry Wolfe é diretor da Wolfe Associates (www.wolfe.com.br), consultoria em compliance preventiva, avaliação de riscos e investigação de fraudes corporativas.
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